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Uma abordagem etnomatemática para o Currículo Trivium
An ethnomathematical approach to the Trivium Curriculum
Un abordaje etnomatemática para el Currículo Trivium
Revemop, vol.. 1, núm. 1, 2019
Universidade Federal de Ouro Preto

Artigos

Revemop
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
ISSN-e: 2596-0245
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 1, núm. 1, 2019

Recepção: 21 Setembro 2018

Aprovação: 17 Dezembro 2018

Publicado: 01 Janeiro 2019

Copyright Revemop 2019.

Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Compartilhamento Pela Mesma Licença.

Resumo: Um dos principais objetivos da Educação Matemática é buscar o desenvolvimento de um processo educacional que possibilite a aquisição e a utilização, pelos alunos, de instrumentos comunicativos, analíticos e materiais essenciais para o pleno exercício dos direitos e deveres intrínsecos à cidadania. Este artigo teórico visa ressaltar que esses instrumentos estão relacionados com a proposição do Currículo Trivium para a Matemática, no qual são considerados três componentes: a) a literacia, que está relacionada com a funcionalidade dos indivíduos na sociedade; b) a materacia, que está relacionada com o entendimento de situações inovadoras desenvolvidas por indivíduos criativos; e c) a tecnoracia, que está relacionada com a utilização astuta dos materiais disponíveis em contextos culturais diversos.

Palavras-chave: Currículo Trivium, Etnomatemática, Literacia, Materacia, Tecnoracia.

Abstract: One of the main objectives of Mathematics Education is to seek the development of an educational process that enables students to acquire and use communicative, analytical, and material instruments which are essential for the exercise of rights and duties intrinsic to citizenship. This theoretical article aims to emphasize that these instruments are related to the proposition of the Trivium Curriculum for Mathematics, in which three components are considered: a) literacy, which is related to the functionality of individuals in society; b) matheracy, which is related to the understanding of innovative situations developed by creative individuals; and c) technoracy, which is related to the astute use of materials available in diverse cultural contexts.

Keywords: Trivium Curriculum, Ethnomathematics, Literacy, Matheracy, Technoracy.

Resumen: Uno de los principales objetivos de la Educación Matemática es buscar el desarrollo de un proceso educativo que haga posible la adquisición y la utilización por los alumnos de instrumentos comunicativos, analíticos y materiales esenciales para el pleno ejercicio de los derechos y deberes intrínsecos a la ciudadanía. Este artículo teórico apunta a resaltar que estos instrumentos están relacionados con la proposición del Currículo Trivium para las Matemáticas, en el cual se consideran tres componentes: a) la literacía, que está relacionada con la funcionalidad de los individuos en la sociedad; b) la materacía, que está relacionada con el entendimiento de situaciones innovadoras desarrolladas por individuos creativos; y c) la tecnoracía, que está relacionada con la utilización hábil de los materiales disponibles en contextos culturales diversos.

Palabras clave: Currículo Trivium, Etnomatemáticas, Literacía, Materacía, Tecnoracía.

1 Considerações iniciais

O conhecimento matemático desenvolvido pelos membros de um determinado grupo cultural que esteja vinculado às práticas matemáticas da cultura dominante tende a extinguir-se, pois, de acordo com as normas estabelecidas e impostas pela dominação intelectual, esse conhecimento torna-se fragilizado em sua aplicação (D’AMBROSIO, 1990).

Nesse contexto, a Educação Matemática admite uma concepção importante no processo educacional, pois o método de educar matematicamente assume uma dimensão de interação entre os membros de diferentes grupos culturais que compõem a sociedade, bem como entre os modos distintos de pensar e de organizar o mundo (ROSA e OREY, 2006).

No entanto, D’Ambrosio (1990) argumenta que, para que os alunos valorizem os problemas retirados de seu cotidiano, é preciso que mergulhem em sua própria cultura, onde essas situações estão enraizadas e são valorizadas. Para Rosa (2010), é necessário que as escolas respeitem as concepções de mundo que os alunos trazem para as salas de aula, para que eles possam compreender o conhecimento matemático desenvolvido pelos membros de grupos culturais distintos. Segundo os autores, é por meio desse conhecimento que os alunos podem agir sobre a sua realidade com o intuito de transformá-la e/ou preservá-la. Dessa forma, Rosa (2010) argumenta que existem outras realidades, outras sociedades, outras culturas e outras Matemáticas. Por exemplo, existe a Matemática utilizada pelos carpinteiros, médicos, pedreiros, engenheiros e jogadores de futebol, bem como existe a Matemática da criança que brinca na rua, que constrói seu cata-vento e que joga videogames.

Em uma sociedade globalizada, para D’Ambrosio (1990), os membros de grupos culturais distintos estão se integrando e interagindo dinamicamente. Nessa dinâmica cultural, o conhecimento é mutuamente compartilhado, transformado, produzido e difundido no próprio grupo, bem como entre os membros de outras culturas. O conhecimento matemático também é produzido nesse contexto cultural, pois é parte integrante do processo de ação-reflexão-ação dos indivíduos sobre a própria realidade.

2 Uma proposta etnomatemática

Uma proposta etnomatemática para a ação pedagógica envolve a elaboração de atividades que tenham relação com o cotidiano dos alunos e busca a sua interação com o currículo matemático escolar por meio da utilização da perspectiva etnomatemática (ROSA, 2010).

Então, D’Ambrosio (2001) argumenta que o “grande motivador do programa de pesquisa que denomino Etnomatemática é procurar entender o saber/fazer matemático ao longo da história da humanidade, contextualizado em diferentes grupos de interesse, comunidades, povos e nações” (p. 17).

Buscando entender a denominação do Programa Etnomatemática, Rosa e Orey (2006) argumentam que a

(...) etnomatemática é o modo pelo qual culturas específicas (etno) desenvolveram, ao longo da história, as técnicas e as ideias (tica) para aprender a trabalhar com medidas, cálculos, inferências, comparações, classificações e modos diferentes de modelar o ambiente social e natural no qual estão inseridas, para explicar e compreender os fenômenos que neles ocorrem (matema) (p. 1).

D’Ambrosio (2002) também utilizou recursos etimológicos para definir a Etnomatemática como a junção de três radicais gregos modificados — etno + matema + tica — significando “o conjunto de artes, técnicas de explicar e de entender, de lidar com o ambiente social, cultural e natural, desenvolvido por distintos grupos culturais” (D’AMBROSIO, 2008, p. 8).

Contudo, é importante ressaltar que a Etnomatemática não é uma disciplina com práticas fundamentadas somente em conceitos e teorias, mas “uma pedagogia viva, dinâmica, de fazer o novo em resposta às necessidades ambientais, sociais, culturais, dando espaço para a imaginação e para a criatividade” (D’AMBROSIO, 2008, p. 10).

Para Rosa (2010), esse programa possibilita que os alunos conciliem o conhecimento matemático escolar com seu conhecimento matemático próprio (comunidade), resultando em encontros culturais que permitem o desenvolvimento de seu senso crítico, reflexão e criatividade.

D’Ambrosio (1990) explica que os conhecimentos matemáticos utilizados nas práticas diárias são muitas vezes distintos daqueles utilizados nos currículos escolares. Nesse sentido, Rosa e Orey (2010) afirmam que quando os alunos percebem que a Matemática não está relacionada com o contexto sociocultural em que vivem, perdem o entusiasmo pelo estudo dessa disciplina.

Por outro lado, os alunos que gostam dos conteúdos matemáticos desenvolvidos tradicionalmente nas escolas podem

(...) se tornar alienados pela utilização de um tipo de pensamento lógico limitado, tornando-se incapazes de serem criativos, críticos, reflexivos e enquadrando-se em um grupo de cidadãos que não conseguem tomar decisões capazes de melhorar e transformar a sociedade (ALVES, 2014, p. 40).

Em consonância, Rosa (2010) afirma que esses alunos apenas são capazes de reproduzir os conteúdos aprendidos da forma que aprenderam, o que os impossibilita de desenvolver seu senso crítico e reflexivo.

Por conseguinte, a proposta principal do programa Etnomatemática é possibilitar a expansão das práticas curriculares ao propiciar um aspecto motivador para o processo de ensino e aprendizagem em Matemática, pois proporciona o “entender saber/fazer matemático ao longo da história da humanidade segundo cada comunidade” (MEDEIROS, 2003, p. 3).

Essa abordagem busca valorizar os aspectos culturais dos alunos e inseri-los nas práticas escolares. Nesse direcionamento, o principal objetivo desse programa é

(...) dar sentido a modos de saber e de fazer das várias culturas e reconhecer como e por que grupos de indivíduos, organizados como famílias, comunidades, profissões, tribos, nações e povos executam suas práticas de natureza Matemática, tais como contar, medir, comparar, classificar (D’AMBROSIO, 2008, p. 7).

Então, a Etnomatemática pode ser descrita como um

(...) programa que visa explicar os processos de geração, organização e transmissão de conhecimento em diversos sistemas culturais e as forças interativas que agem nos e entre os três processos. Portanto, o enfoque é fundamentalmente holístico (D’AMBROSIO, 1998, p. 7).

Complementando essa definição, Rosa e Orey (2005) ressaltam que é importante que esse

(...) programa de estudo represente uma metodologia para auxiliar a descoberta e a análise dos processos de transmissão, difusão e institucionalização do conhecimento matemático (ideias e práticas) que foram originados, em diversos grupos culturais, através da história. O Programa Etnomatemática e sua conexão com a história, com a filosofia e com a pedagogia é um reconhecimento deste fato. Neste contexto, a matemática é culturalmente enraizada e profundamente identificada com a história e o desenvolvimento de civilizações específicas (p. 366).

A Etnomatemática é, portanto, um programa de pesquisa direcionado para a história e a filosofia da Matemática com amplas implicações pedagógicas. Seu foco principal é estudar a busca da humanidade pelo conhecimento bem como a influência deste no comportamento da humanidade (D’AMBROSIO, 1990).

Contudo, é necessário alertar que a maior dificuldade que os investigadores têm com o desenvolvimento de suas pesquisas é a de se “liberarem da postura disciplinar e, consequentemente, procuram explicar e entender o saber e o fazer de outras culturas segundo categorias próprias à Matemática Acadêmica” (D’AMBROSIO, 2008).

Similarmente, para Rosa (2010), um dos desafios da Etnomatemática é a valorização das práticas das culturas locais, no processo de ensino e aprendizagem em Matemática, sem a interferência da cultura dominante.

A metodologia desse programa é investigativa, pois se preocupa em examinar práticas locais, bem como “valorizar, difundir e respeitar o conhecimento matemático (ideias, noções, procedimentos, processos e práticas) que se originam em diversos contextos culturais no decorrer da história” (D’AMBROSIO e ROSA, 2008, p. 93).

Como a Etnomatemática é essencialmente qualitativa, a investigação desse programa deve partir do fato como um todo, definir o objeto da investigação e utilizar os meios específicos para relacionar os métodos de pesquisa, como, por exemplo, a etnografia e a sua interação natural entre os pesquisados e pesquisadores (D'AMBROSIO, 2008).

Por conseguinte, D’Ambrosio (2008) propõe a denominação “Programa Etnomatemática”, pois

(...) revela uma grande preocupação com a dimensão política ao estudar história e filosofia da matemática e suas implicações pedagógicas. As pesquisas consistem essencialmente numa investigação holística da geração [cognição], organização intelectual [epistemologia] e social [história] e difusão [educação] do conhecimento matemático, particularmente em culturas consideradas marginais (p. 14).

D’Ambrosio e Rosa (2008) comentam ainda sobre outro aspecto importante do programa Etnomatemática, que tem como objetivo

(...) oferecer uma perspectiva inovadora para o desenvolvimento de uma sociedade dinâmica e globalizada, que reconhece que os membros de grupos culturais distintos desenvolvem métodos únicos para explicar, entender, compreender, agir e transformar a própria realidade (p. 99).

De acordo com essa asserção, o programa Etnomatemática pode ser considerado como a arte ou técnica (techné) de explicar, entender e desempenhar ações na realidade (matema), dentro de um contexto cultural próprio (etno) (D’AMBROSIO, 1993). A figura 1 mostra o significado da denominação Etnomatemática, proposta por D’Ambrosio (2001).

Com esse programa, é possível reconhecer que todas as culturas e todos os povos, desenvolveram e desenvolvem maneiras próprias de explicar, de conhecer e de modificar as suas realidades, que estão em permanente evolução (ROSA, 2010).

Para Rosa e Orey (2003), um princípio fundamental do programa Etnomatemática é a valorização dos conhecimentos vinculados a essas tradições, a partir do reconhecimento das distintas maneiras de explicação de mundo nelas desenvolvidas.


Figura 1
Significado do termo Etnomatemática
(D’AMBROSIO, 2001)

Essas formas de construção de conhecimentos não são estáticas, pois estão em constante mutação em virtude do dinamismo cultural[1], que propõe uma complementaridade nas relações entre os membros de grupos culturais distintos.

Por exemplo, Rosa e Orey (2014) argumentam que a interação de conhecimentos matemáticos entre os membros de grupos culturais distintos está relacionada com as ideias, as noções, os procedimentos e as práticas matemáticas que são desenvolvidas localmente.

Nesse encontro entre culturas, os conhecimentos locais interagem com aqueles consolidados academicamente por meio do desenvolvimento de uma relação recíproca entre diferentes saberes e fazeres. Desse modo, pode-se afirmar que a

(...) Etnomatemática se situa numa área de transição entre a antropologia cultural e a matemática que chamamos academicamente institucionalizada, e seu estudo abre caminho ao que poderíamos chamar de uma matemática antropológica (D’AMBROSIO, 1998, p. 18).

Diante dessa asserção, a Figura 2 mostra um diagrama que representa a Etnomatemática como a interseção entre a antropologia cultural e a Matemática acadêmica.


Figura 2
Etnomatemática como a interseção entre a antropologia cultural e a Matemática acadêmica
(D’AMBROSIO, 1998, p. 18, adaptado)

Consequentemente, Rosa e Orey (2003) argumentam que uma das implicações para a ação pedagógica do programa Etnomatemática está relacionada com a valorização do conhecimento cultural dos alunos sobre o seu saber/fazer matemático para utilizá-lo como uma fundamentação teórica e metodológica que possa auxiliá-los no desenvolvimento e na aquisição de novos conhecimentos.

Essa abordagem possibilitará que os alunos se tornem cidadãos críticos, reflexivos, conscientes e capazes de tomar decisões visando transformar a sociedade e as suas comunidades, tornando-as mais justas (ROSA, 2010). Ela está relacionada com a ação pedagógica do programa Etnomatemática que visa à elaboração de atividades curriculares fundamentadas no entorno sociocultural dos alunos.

3 Propondo um currículo para a Etnomatemática

O currículo pode ser considerado como uma estratégia para a ação pedagógica do programa Etnomatemática (D’AMBROSIO, 1996), pois é

(...) organizado como reflexo das prioridades nacionais e do interesse dos grupos que estão no poder. Muito mais que a importância acadêmica das disciplinas, o currículo reflete o que a sociedade espera das respectivas disciplinas que o compõem (D’AMBROSIO, 2001, p. 63).

Por exemplo, para Lipka (2002), esse currículo pode ser concebido de uma maneira holística, pois tem como objetivo destacar os aspectos culturais dos contextos nos quais os alunos estão inseridos. Essa abordagem é realizada por meio da integração de procedimentos e práticas matemáticas da cultura dos alunos com os conteúdos da Matemática convencional desenvolvidos nas salas de aula.

Desse modo, Adam (2002) argumenta que a elaboração desse currículo se inicia com a exploração das matematizações[2] realizadas pelos membros de cada grupo com a utilização dos conhecimentos adquiridos através das experiências em seu meio ambiente e em sua cultura. Essas experimentações matemáticas são utilizadas para que os alunos possam entender como as ideias matemáticas são formuladas e aplicadas em diferentes contextos culturais.

De acordo com Adam (2002), esse conhecimento matemático pode ser utilizado para que se possa interagir com a Matemática convencional de uma maneira holística, possibilitando sua compreensão por meio da apreciação de suas relações com as práticas matemáticas realizadas no cotidiano, que são familiares aos membros de grupos culturais distintos.

Nesse sentido, segundo D’Ambrosio (2001), existe a necessidade de que a análise do currículo seja realizada a partir de três componentes: os objetivos, os conteúdos e os métodos, que devem estar integrados em um mesmo processo. A figura 3 mostra os três componentes do currículo.


Figura 3
Três componentes do currículo
(D’AMBROSIO, 2001)

Para D’Ambrosio (2001), esses três componentes curriculares devem ser solidários, pois existe a necessidade de que estejam integrados. Desse modo, é importante que a matriz curricular matemática seja alterada à medida que haja uma reformulação nos objetivos e métodos do currículo. Por exemplo, as

(...) dificuldades de implementação do uso de calculadoras e computadores nas escolas esbarram com a insistência de se querer manter os conteúdos e os objetivos tradicionais: habilidades em operações e resolução de problemas-tipo. Calculadoras e computadores devem ser acompanhados por uma reformulação de conteúdos, deixando de lado coisas que só se justificam por estar no programa [há] muito tempo, e passando para coisas modernas, que não poderiam ser abordadas sem essa tecnologia. E esse objetivo não é, naturalmente, ter alguém capacitado a repetir coisas desligadas da realidade de hoje, isto é, passar em testes e exames que são absolutamente artificiais (D’AMBROSIO, 2009, p. 69).

De acordo com essa asserção, Powell e Frankenstein (1997) propõem a elaboração de um currículo baseado no conhecimento dos alunos. Esse currículo possibilita que os professores sejam criativos na escolha dos tópicos de Matemática a serem ensinados.

Em consonância, Rosa (2010) argumenta que, por meio da realização de diálogos com os alunos, os professores podem descobrir as temáticas que os auxiliarão a direcionar o desenvolvimento do currículo matemático.

Nessa perspectiva, os professores podem engajar os alunos na análise crítica da cultura dominante e de sua própria cultura com a utilização da linguagem matemática, numa perspectiva sócio-político-transformadora do currículo matemático (POWELL e FRANKENSTEIN, 1997).

É importante, por exemplo, que os alunos desenvolvam competências e habilidades necessárias para que possam utilizar, operar e dominar apropriadamente as ferramentas tecnológicas, como as calculadoras e os computadores, na análise e resolução de fenômenos encontrados no cotidiano (BIGODE, 2000). Neste sentido, Silva (2012) apud Alves (2014, p. 44) comenta que

(...) um conhecimento prático que pode favorecer a classe dominante é o ensino da Matemática Financeira, que privilegia a utilização de computadores e calculadoras. Assim, seus conteúdos financeiros são ensinados, principalmente, nos cursos de formação de administradores, economistas, contadores e comerciantes, tendo por objetivo a tomada de decisões pela classe que exerce o poder.

Nessa reformulação curricular, é necessário que as discussões sobre a utilização de recursos tecnológicos, como as calculadoras, em salas de aula, sejam substanciadas, pois é “inadmissível pensar hoje em aritmética e álgebra, que privilegiam o raciocínio quantitativo, sem a plena utilização de calculadoras” (D’AMBROSIO, 2009, p. 43).

Frequentemente, os recursos tecnológicos utilizados em contextos socioculturais diversos auxiliam no entendimento das ideias, procedimentos e práticas matemáticas desenvolvidas pelos membros de grupos culturais distintos. Esses recursos possibilitam a incorporação de diferentes modos de explicações e da inserção de simbologias alternativas no processo evolutivo do conhecimento matemático (ROSA e OREY, 2016).

Sobre essa questão, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Matemática (BRASIL, 1998) mencionam que

(...) um currículo de Matemática deve procurar contribuir, de um lado, para a valorização da pluralidade sociocultural, evitando o processo de submissão no confronto com outras culturas; de outro, criar condições para que o aluno transcenda um modo de vida restrito a um determinado espaço social e se torne ativo na transformação de seu ambiente (p. 28).

Nesse direcionamento, no atual cenário educacional, existe a necessidade de se buscar processos de apropriação de novas concepções curriculares para o ensino e aprendizagem em Matemática. Para Rosa e Orey (2006), os educadores e pesquisadores precisam criar um ambiente escolar que seja propício para o desenvolvimento de uma ação pedagógica para o Programa Etnomatemática.

Então, é importante que esse ambiente escolar combata a exclusão social, pois deve favorecer a compreensão da diversidade cultural. Nesse contexto, é importante que as práticas matemáticas se conectem com o saber matemático que cada indivíduo traz consigo enquanto participante de uma determinada comunidade (ROSA, 2010).

Dessa maneira, o currículo escolar tem como objetivo a valorização dos saberes e fazeres desenvolvidos nas diversas classes sociais que compõem o ambiente escolar. Por conseguinte, existe a necessidade de investigar as concepções, tradições e práticas matemáticas dos membros de um determinado grupo cultural, com a intenção de incorporá-las ao currículo como um conhecimento escolar (KNIJNIK, 1993; FERREIRA, 1997).

O atual currículo matemático se apresenta de uma maneira engessada e única, por meio da qual prevalece o conhecimento da cultura dominante (ROSA, 2010). Então, é preciso estar atento para que a Matemática não seja considerada como um fator de exclusão social (SKOVSMOSE, 2007). É necessário o desenvolvimento de um conhecimento matemático que valorize os saberes e fazeres que os alunos trazem para a sala de aula, que advêm de sua história cultural, respeitando, dessa maneira, as diferentes formas de pensar dos integrantes da sociedade. Essa ação busca a aproximação do conhecimento matemático desenvolvido localmente pelos membros de outras culturas com aquele trabalhado no ambiente escolar (ROSA e OREY, 2015).

Na mesma linha de raciocínio, Scandiuzzi (2002) argumenta que um dos caminhos para a ação pedagógica do Programa Etnomatemática está relacionado com a valorização do conhecimento matemático desenvolvido pelos membros de diferentes grupos culturais, por meio da utilização de suas ideias e procedimentos matemáticos informais em salas de aula. Essa abordagem provoca uma mudança na formação dos educadores matemáticos, que podem questionar a unicidade e/ou universalidade da Matemática, bem como na postura deles em relação ao processo de ensino e aprendizagem desse componente curricular (SCANDIUZZI, 2002).

Nesse currículo relacionado com a ação pedagógica do Programa Etnomatemática, para D’Ambrosio (1991), o papel dos professores reside, essencialmente, em gerar uma dinâmica para promover o comportamento interativo e colaborativo dos alunos, pois essa é uma das etapas fundamentais da evolução sociocultural dos indivíduos. Assim, essa proposta curricular pode ser considerada como uma resposta educacional às expectativas de tentar eliminar e/ou reduzir as desigualdades e as violações da dignidade humana, pois esse é o primeiro passo para que os indivíduos possam alcançar a justiça social.

D’Ambrosio (1998) destaca que o currículo matemático possui cinco elementos que o caracterizam: utilitário, cultural, formativo, sociológico e estético. Contudo, apesar de todos esses elementos serem relevantes, há uma tendência do emprego excessivo do utilitarismo no currículo escolar. E esse utilitarismo é criticado pelos investigadores e educadores, pois as situações-problema elaboradas estão desvinculadas da realidade dos alunos,

(...) [a] ênfase é dada sobre problemas, de modo formulado, já codificados. Situações reais são, na verdade, situações simuladas e, embora haja o desejo de trabalhar com situações realmente reais, estas não conseguem entrar nas salas de aula, a menos que se mude de atitude com relação à Matemática (D’AMBROSIO, 1998, p. 28).

Então, existe a necessidade da realização de uma revisão curricular por meio da introdução de disciplinas inovadoras, com enfoques diferenciados, para o desenvolvimento do conhecimento matemático em salas de aula. Nesse sentido, D’Ambrosio (1990) propõe cinco blocos de disciplinas, que estão associados aos valores relacionados com a ação pedagógica do Programa Etnomatemática:

1. Utilitário

  • Modelagem

  • Formulação de problemas

  • Matemática dos fenômenos

  • Estatísticas e probabilidades

  • Economia

  • Situações de conflito (Teoria dos Jogos)

  • Calculadoras e computadores: informática

2. Cultural

  • Etnomatemática

  • Matemática antropológica

  • História social e política de Matemática

  • Natureza da Matemática epistemológica

3. Formativo

  • Jogos matemáticos

  • Séries numéricas

  • Números primos (aritmética)

  • Geometria dedutiva

4. Sociológico

  • História comparada da Matemática

  • Sociologia da Matemática: instituições

5. Estético

  • Geometria e aritmética do sagrado (místicas)

  • Astronomia

  • História da arte

Para D’Ambrosio (1990), a dinâmica curricular das salas de aula pode ser beneficiada por meio da utilização desses blocos de disciplinas, sendo importante o reconhecimento da necessidade de se oferecer uma Educação Matemática diferenciada para os alunos provenientes de grupos culturais distintos.

Por exemplo, a ação pedagógica do Programa Etnomatemática propõe uma nova maneira para se trabalhar com as concepções matemáticas em sala de aula (ROSA, 2010). Ela fornece um meio para que os alunos possam, através de suas vivências e experiências culturais, estabelecer relações matemáticas com as suas realidades diárias, pois

cada grupo cultural tem suas maneiras próprias de matematizar a realidade. No campo educacional não há como ignorar isso e não respeitar essas particularidades quando do ingresso [dos alunos] na escola. Todo o passado cultural do aluno deve ser respeitado, dando-lhe confiança em seu próprio conhecimento e dando-lhe, também, uma certa dignidade cultural, ao ver as suas origens sendo trabalhadas pelo professor. Isso irá estimular sua confiança, podendo ser um fator atenuante de atitudes negativas com relação à disciplina (BASSANEZI, 2002, p. 207).

Entretanto, Rosa e Orey (2017) argumentam que, para que os alunos valorizem os problemas retirados de seu cotidiano, é preciso que se conscientizem da própria cultura, valorizando também as suas próprias soluções para os problemas enfrentados no cotidiano. De acordo com Rosa (2010), para que isso ocorra, é necessário que as escolas respeitem as concepções de mundo que os alunos trazem para as salas de aula para que possam compreender o conhecimento matemático desenvolvido pelos membros de grupos culturais distintos.

Nesse sentido, Rosa e Orey (2015) argumentam que é por meio desse conhecimento que os alunos podem agir sobre a sua realidade com o intuito de transformá-la e/ou preservá-la por meio da perspectiva do programa da Etnomatemática no currículo. Portanto, a educação necessita de uma reformulação curricular que tenha como objetivo a formação de indivíduos para um mundo complexo e em contínua transformação

4 Um Currículo Trivium para a Matemática

É importante que o currículo escolar tenha como prioridade o desenvolvimento da criatividade, da criticidade e da cidadania, e que valorize as experiências e práticas acumuladas dos indivíduos em sua comunidade, que respeite a sua cultura (ROSA, 2010).

Uma proposta curricular para atender a essas exigências está relacionada com a incorporação do Programa Etnomatemática no currículo escolar, visando a preparar os indivíduos para uma atuação crítica, criativa e reflexiva na sociedade (ROSA e OREY, 2015).

Nesse sentido, D’Ambrosio (1999) relata a necessidade da elaboração de um currículo matemático que considere as novidades tecnológicas que emergem no contexto sociocultural e priorize o desenvolvimento de temas que estimulam a inclusão social e a permanência dos alunos na escola.

É necessário que esse currículo possibilite aos alunos o desenvolvimento de habilidades para processar as informações encontradas na mídia, capacitando-os para a produção de significados na comunicação escrita e falada por meio da utilização de códigos e representações gráficas (D’AMBROSIO, 1999).

Rosa e Orey (2015) argumentam que a utilização do Currículo Trivium proposto por D’Ambrosio (1999) pode contribuir de modo significativo para a melhoria do currículo matemático escolar, pois prioriza a formação de indivíduos com capacidade crítica para analisar os instrumentos comunicativos, analíticos e materiais.

Por exemplo, o Currículo Trivium proposto por D’Ambrosio (1999) pode contribuir para o desenvolvimento de uma nova postura por parte dos professores, voltada para a promoção de um ensino solidário, flexível e estimulante. Assim, o principal objetivo desse currículo é a difusão de conhecimentos matemáticos locais por meio de uma prática educacional que considere a valorização das raízes culturais dos alunos.

É necessário, portanto, que o Currículo Trivium, centrado na perspectiva do Programa Etnomatemática, entre na pauta das investigações em Educação Matemática, pois ele surge como uma alternativa educacional construtiva para a proposição de uma ação pedagógica que busque auxiliar os alunos no desenvolvimento de sua criatividade e cidadania, ao estudarem situações-problema enfrentadas em seu cotidiano.

O Currículo Trivium para a Matemática, conforme proposto por D’Ambrosio (1999), é composto por: a) literacia, que são os instrumentos comunicativos; b) materacia, que são os instrumentos analíticos; e c) tecnoracia, que são os instrumentos materiais e tecnológicos. Esses conceitos são explicados a seguir, com base nas definições de Rosa e Orey (2015):

Literacia ou Instrumentos Comunicativos

É a capacidade que os membros de grupos culturais distintos possuem de processar criticamente as informações escritas e faladas, e de se manifestar, de maneira reflexiva e integradora, por meio da leitura, da escrita, de diferentes mídias como a internet, do cálculo e do diálogo. Desse modo, a literacia auxilia esses membros no desenvolvimento de suas atividades rotineiras.

De acordo com Rosa e Orey (2015), em uma perspectiva etnomatemática, a literacia é utilizada para a integração dos indivíduos em suas comunidades, pois é a maneira pela qual desenvolvem as habilidades de leitura e interpretação das informações advindas de outros contextos culturais, possibilitando, assim, a compreensão e a integração da diversidade.

No ambiente escolar, essa abordagem possibilita aos alunos trocarem saberes e fazeres que trazem para a comunidade escolar ao processarem as informações originadas em seu próprio contexto cultural (ROSA e OREY, 2006). Nessa perspectiva, os professores podem explorar o contexto cultural de seus alunos para que a comunidade escolar tenha conhecimento das ideias, concepções, procedimentos e práticas matemáticas locais.

O principal objetivo dessa abordagem é capacitar os membros da comunidade escolar para a utilização de contextos distintos no processo de ensino e aprendizagem em Matemática (ROSA e OREY, 2015), com o intuito de desenvolver nos alunos a capacidade de se comunicar de diversas maneiras com a utilização da fala, da escrita, dos sinais, dos gestos e dos números e sua significação (D’AMBROSIO e D’AMBROSIO, 2013), por meio do desenvolvimento da própria numeracia.

Esses instrumentos comunicativos possibilitam aos alunos analisarem, interpretarem, compreenderem, processarem, responderem e resolverem, de uma maneira crítica e reflexiva, as diversas situações-problema presentes no cotidiano.

Materacia ou Instrumentos Analíticos

É a capacidade que os membros de grupos culturais distintos possuem para interpretar e analisar criticamente os códigos expostos nas leis opressivas locais e, também, de utilizar os modelos e as simulações na vida diária. Dessa maneira, a materacia está ligada ao desenvolvimento da criatividade e da capacidade dos membros de grupos culturais distintos de analisar as situações-problema cotidianas e as consequências dessa análise (ROSA e OREY, 2015).

Além disso, a partir da utilização dos instrumentos intelectuais da materacia, é possível que esses membros interpretem e examinem os sinais, os símbolos e os códigos, para que possam propor o desenvolvimento de modelos retirados do cotidiano, com o objetivo de elaborar abstrações sobre representações da realidade (D’AMBROSIO, 2005).

Do ponto de vista da Etnomatemática, a materacia pode ser descrita como o domínio de habilidades, estratégias e competências desenvolvidas localmente que capacitam os indivíduos a se conscientizarem dos diferentes modos pelos quais os membros de grupos culturais distintos explicam as suas crenças, tradições, mitos, símbolos e seu conhecimento matemático (ROSA e OREY, 2015).

No contexto escolar, a materacia auxilia os alunos na aquisição dos instrumentos intelectuais necessários para a análise simbólica das situações-problema estudadas em sala de aula. Do mesmo modo, a utilização da literacia associada à materacia na elaboração das atividades curriculares pode auxiliar os professores no desenvolvimento de investigações matemáticas e na mediação do processo inquisitivo dos alunos (ROSA e OREY, 2015).

Essa abordagem possibilita que os alunos busquem o entendimento dos conceitos matemáticos relacionados com as situações-problema trabalhadas em sala de aula que estão de acordo com as suas referências culturais, influenciando, assim, seu processo de tomada de decisão, tornando-o consciente, crítico, reflexivo e fundamentado na aplicação dos instrumentos intelectuais e analíticos da materacia.

Tecnoracia ou Instrumentos Materiais

É a capacidade que os membros de grupos culturais distintos possuem para utilizar e combinar os instrumentos materiais e tecnológicos, simples ou complexos, inclusive o próprio corpo, para, mediante uma avaliação crítica de suas possibilidades e limitações, adequá-los às necessidades e situações vividas no cotidiano, pois, se a tecnologia for utilizada de maneira inadequada, pode trazer prejuízos para sociedade (ROSA e OREY, 2015).

De acordo com D’Ambrosio (2016), a educação tem por responsabilidade preparar os futuros produtores e consumidores da tecnologia, oferecendo condições para que reflitam sobre as consequências dessa produção e utilização. Para Rosa e Orey (2015), a tecnoracia é a utilização de diferentes instrumentos matemáticos, como as calculadoras, os programas de computador, os softwares e outros instrumentos materiais que possibilitam o estudo e o desenvolvimento de modelos matemáticos para auxiliar os alunos no processo de tomada de decisão.

Do ponto de vista da Etnomatemática, D’Ambrosio (2008) argumenta que a tecnoracia é considerada como uma característica importante do conhecimento científico, pois se manifesta por meio do desenvolvimento de instrumentos materiais e ferramentas tecnológicas que traduzem formas distintas de os indivíduos lidarem com os recursos naturais, sociais e culturais e, também, com os ambientes natural, político e econômico, a fim de facilitar a incorporação de uma diversidade de explicações, crenças, tradições, mitos e símbolos em suas práticas diárias.

Conforme apresentado por Rosa e Orey (2015), a proposta do currículo trivium é mais ampla do que aquela abordada nos currículos matemáticos tradicionais. Além disso, envolve também os conceitos de Etnomatemática e Modelagem, na medida em que propõe uma ação pedagógica que tem como objetivo a eliminação das desigualdades sociais e das violações da dignidade humana.

5 Alguns exemplos...

De acordo com Rosa e Orey (2015), é importante disponibilizar alguns exemplos que podem ser considerados como aplicação do Currículo Trivium para a Matemática.

O conhecimento matemático produzido na construção de sites mostra como as diversas habilidades auxiliam os trabalhadores da construção civil a compreenderem e modelarem os fenômenos que ocorrem em ambientes socioculturais distintos, propiciando oportunidades para os educadores organizarem as suas práticas educativas a partir das vivências cotidianas de seus alunos, estabelecendo, assim, os vínculos com os conteúdos, pois tem como objetivo colaborar com o desenvolvimento da autonomia de jovens e adultos.

Duarte (2004) investigou a especificidade dos saberes matemáticos produzidos pelos trabalhadores da construção civil através das práticas matemáticas desenvolvidas nos canteiros de obras. A partir desse estudo, o pesquisador propôs uma reflexão sobre os saberes e fazeres desenvolvidos por essa classe de trabalhadores e por aqueles legitimados pela Matemática acadêmica, para determinar as implicações curriculares que são inferidas da produção desse conhecimento matemático.

Bandeira e Lucena (2004) investigaram as ideias matemáticas — como, por exemplo, a técnica do par de cinco — presentes nas atividades de produção e comercialização de hortaliças de uma comunidade de horticultores do povoado de Gramorezinho, localizado no estado do Rio Grande do Norte, mostrando a importância da utilização do conhecimento matemático próprio deles como elemento facilitador de todo o processo de produção e preparo para comercialização. Nessa investigação, foram desvendados os conhecimentos matemáticos específicos elaborados pelos horticultores, muitas vezes em código diferente da Matemática acadêmica. Naquele contexto, portanto, existe a necessidade da proposição de um currículo matemático baseado em uma perspectiva etnomatemática, para auxiliar os alunos no desenvolvimento de procedimentos e práticas matemáticas que se originam em sua própria cultura (BANDEIRA e LUCENA, 2004).

Outro exemplo é a construção de barris de vinho com base em um etnomodelo, desenvolvido por um grupo de estudantes que investigou a produção vinícola na região sul, ofereceu um bom exemplo da conexão entre a Etnomatemática e a Modelagem. De acordo com Bassanezi (2002), a motivação desse estudo foi determinar o volume dos barris de vinho aplicando as técnicas aprendidas pelos ancestrais dos produtores vinícolas que vieram para aquela região do Brasil como imigrantes italianos no início do século XX. Desde esse período, a plantação de videiras e a produção de vinhos tornaram-se atividades agrícolas e industriais essenciais para a economia daquela região.

Nesse estudo, os alunos identificaram algumas características socioculturais dos membros desse grupo cultural específico, com o objetivo de entender e compreender os elementos culturais que moldam o pensamento matemático desses membros. Os alunos descobriram que, além de produzir vinho, esses produtores também constroem os próprios barris de madeira, utilizando esquemas geométricos herdados de seus antepassados italianos. O principal objetivo dessa abordagem foi o de apresentar, valorizar e problematizar os diferentes modos de calcular, medir e estimar o volume de um barril de vinho fabricado artesanalmente de geração em geração.

Um estudo mais recente, conduzido por Cortes (2017) em uma escola pública estadual e em uma feira livre, ambas situadas na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), objetivou investigar como a abordagem dialógica da Etnomodelagem poderia contribuir para o processo de re-significação do conceito de função, por parte de 38 alunos matriculados no segundo ano do ensino médio, durante a interação deles com um feirante e as suas práticas laborais.

Complementando o objetivo geral desse estudo, Cortes (2017) também propôs os seguintes objetivos específicos: a) descrever a conexão entre a Etnomatemática e a Modelagem Matemática; b) compreender a importância das concepções culturais para a elaboração de etnomodelos matemáticos extraídos das práticas cotidianas encontradas no contexto sociocultural do feirante; c) descrever como as abordagens êmica, ética e dialógica da Etnomodelagem se manifestam durante os encontros entre um grupo de alunos do segundo ano do ensino médio e um feirante; e d) verificar como as práticas matemáticas de um feirante podem ser utilizadas em sala de aula para o desenvolvimento da ação pedagógica para a Etnomodelagem.

Um dos principais resultados obtidos por Cortes (2017) estava relacionado com uma abordagem integradora do currículo matemático escolar, que considerou ambos os conhecimentos matemáticos, local e acadêmico, para que os professores e alunos pudessem compreender, de uma maneira holística e abrangente, as informações matemáticas desenvolvidas pelos membros de grupos culturais distintos que compõem a população discente escolar.

Enfim, existe a necessidade de valorizar as diversas formas de conhecer e interpretar a realidade dos membros provenientes de grupos culturais distintos (D’AMBROSIO, 2001), buscando maneiras de direcionar os alunos para o desenvolvimento de habilidades que os tornem capazes de ler, compreender, interpretar e desenvolver uma postura crítica mediante as situações-problema que enfrentam no cotidiano.

6 Considerações

Um dos principais objetivos da Educação Matemática é buscar o desenvolvimento de um processo educacional que possibilite a aquisição e a utilização, pelos alunos, de instrumentos comunicativos, analíticos e materiais essenciais para o pleno exercício dos direitos e deveres intrínsecos à cidadania (D’AMBROSIO, 2001). E é importante ressaltar que esses instrumentos estão relacionados com a proposição do Currículo Trivium para a Matemática.

Existe a necessidade de que seja proposto um currículo que tenha como objetivo a viabilização e a utilização crítica de instrumentos comunicativos, analíticos e materiais relacionados com o contexto sociocultural dos alunos. Nesse sentido, Sousa (2016) argumenta que o Programa Etnomatemática mostra a sua rejeição à fragmentação do conhecimento matemático e, consequentemente, a sua afirmação para o desenvolvimento de uma educação transdisciplinar e transcultural.

Desse modo, a rejeição à fragmentação do conhecimento matemático pode ser compreendida a partir do desenvolvimento do Currículo Trivium, no qual são considerados três componentes: a) a literacia, que está relacionada com a funcionalidade dos indivíduos na sociedade; b) a materacia, que está relacionada com o entendimento de situações inovadoras desenvolvidas por indivíduos criativos; e c) a tecnoracia, que está relacionada com a utilização astuta dos materiais disponíveis em contextos culturais diversos.

O Currículo Trivium tem como objetivo a proposição de uma ação pedagógica que busca atender às necessidades educacionais dos alunos, visto que as estratégias de ensino são fundamentadas em seus conhecimentos tácitos. Essa abordagem possibilita um engajamento dos alunos na análise crítica e reflexiva da cultura dominante, bem como dos aspectos culturais da própria comunidade, por meio da compreensão da linguagem matemática numa perspectiva social, política e cultural, que respeita as suas dificuldades e necessidades.

Esse currículo, portanto, busca incluir temas relacionados com as origens socioculturais de alunos na elaboração das atividades matemáticas curriculares propostas em sala de aula. Essa abordagem visa analisar as oportunidades de aprendizagem de alunos provenientes de grupos culturais distintos que, historicamente, estão sub-representados no processo de ensino e aprendizagem em Matemática (ROSA e OREY, 2015).

Nesse sentido, D’Ambrosio (2016) afirma que a proposta da conceituação do Currículo Trivium pode ser considerada como o

(...) reconhecimento de uma dinâmica curricular que contraria a rigidez, característica dos currículos atualmente adotados nos sistemas escolares. Essa rigidez manifesta-se em objetivos, conteúdos, métodos e avaliação que são definidos previamente à prática escolar, que a eles se subordina. (...) Com a falsa aceitação de homogeneidade cultural e cognitiva, ignoram-se as maneiras próprias que o aluno tem para explicar e lidar com fatos e fenômenos naturais e sociais (p. 127).

Assim sendo, a literacia, a materacia e a tecnoracia são os componentes básicos de um currículo dinâmico para a Educação Matemática, direcionado para o desenvolvimento de uma civilização em constante mudança. Portanto, do ponto de vista do Programa Etnomatemática, a implantação e implementação do Currículo Trivium torna-se relevante, pois existe a necessidade de que os educadores, em sua prática docente, “adote[m] uma nova atitude e assuma[m] sua responsabilidade perante o futuro” (D’AMBROSIO, 2011, p. 108).

Finalizando, o Currículo Trivium relaciona-se com a qualidade do conhecimento matemático produzido, acumulado e difundido de geração em geração e, portanto, pode exercer um papel transformador na sociedade. Esse é um processo inerente à formação educacional de cidadãos críticos e conscientes de sua responsabilidade sociocultural. Consequentemente, esse currículo também pode ajudar a inserir os alunos de maneira digna na sociedade, pois aguça o desenvolvimento do senso crítico e da criatividade, necessários para a inserção cultural, social, econômica e política.

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Notas

[1] O dinamismo cultural ocorre entre os sistemas acadêmico e local de conhecimento. Nessa dinâmica, os membros de grupos culturais distintos identificam e decodificam o conhecimento local que foi adquirido de geração em geração, acumulando-o e transmitindo-o entre os membros desse grupo (ROSA e OREY, 2014).
[2] A matematização é o processo por meio do qual os membros de grupos culturais distintos utilizam diferentes ferramentas matemáticas que possam auxiliá-los a organizar, analisar, compreender, entender, modelar e resolver problemas específicos enfrentados no cotidiano. Essas ferramentas possibilitam a identificação e a descrição de ideias, procedimentos e práticas matemáticas específicas de um contexto cultural, que visam auxiliar os membros dos grupos culturais a descobrirem relações e regularidades, esquematizarem, formularem e visualizarem situações-problema de maneiras diferenciadas, transferindo-as do mundo real para a conceituação matemática por meio da matematização (ROSA e OREY, 2017).

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