ARTEFILOSOFIA renova a chamada para o dossiê "Filosofias do som e do audível"
FILOSOFIAS DO SOM E DO AUDÍVEL
Chamada para artigos — ArteFilosofia
Organizado por Igor Reyner (UFRJ) e Ricardo M. Nachmanowicz (UFOP)
Data limite para submissão: 30/jun./2024
Roberto Casati, Jérôme Dokic e Elvira Di Bona (2020) afirmam que o que torna o som relevante para a filosofia é, não apenas sua centralidade em relação à percepção, mas também o modo idiossincrático com que ele se apresenta como matéria filosófica. Publicações recentes, tais como An Epistemology of Noise (2018), de Cecile Malaspina, Sound Objects (2019), editado por James A. Steintranger e Rey Chow, The Hum of the World: A Philosophy of Listening (2019), de Lawrence Kramer, Penser avec les oreilles (2020), de François Noudelmann, ou Shattering Biopolitics: Militant Listening and the Sound of Life (2021), de Naomi Waltham-Smith, sinalizam, de modo bastante heterogêneo, novos caminhos para as reflexões sobre som e filosofia, ao mesmo tempo que reavaliam categorias sonoras já consolidadas do ponto de vista filosófico, tais como o objeto sonoro ou o ruído. A consolidação e expansão vertiginosa, nas duas últimas décadas, dos Estudos do Som (Sound Studies) — isto é, dessa “febre nas ciências humanas que toma o som como seu ponto analítico de partida ou chegada” (Sterne, 2012) — bem como a elaboração do abrangente conceito de sonotropismo (Scherzinger, 2012), ou seja, “a aspiração da filosofia à condição de música”, evidenciam o potencial do som e suas formas clássicas — a voz, a música, o ruído — de serem mobilizado como temas filosóficos. Essas tendências evidenciam, ainda, o desejo de dar à sonoridade e à escuta centralidade no campo da produção teórica.
Uma arqueologia dessa ambição nos remete ao termo grego aisthesis, cujo significado perpassa múltiplas dimensões da sensibilidade humana e dos sentidos. A depender do uso, aisthesis pode se relacionar, entre outras coisas, aos órgãos dos sentidos ou faculdades perceptivas, à experiência da percepção ou aos objetos dessa percepção. No contexto filosófico, seu uso prevalente deriva-se de análises de Platão e Aristóteles que estabelecem aesthesis como “uma cognição do particular que aparece sob uma forma intuitiva [gnôseis]”.
A partir dessas reflexões inaugurais promovidas pela filosofia grega, o termo assumiu papéis diversos em associação às posições teóricas dominantes da cultura ocidental pré-moderna, desembocando, no século XVIII, na cunhagem, por Alexander Baumgarten, do termo Äesthetik. Como ressalta Marc Jimenez (2004), o termo estética passou, a partir do século XIX e graças à sua ambiguidade etimológica, a delimitar um campo do conhecimento voltado para questões do belo e da arte, ao mesmo tempo que a referir à especialização do conhecimento, dos métodos e dos objetos relativos ao sensível e ao sensorial. Contudo, o processo histórico de institucionalização da estética como disciplina encurtou o campo estético, que, paulatinamente, se tornou sinônimo de filosofia da arte. Nesse processo, a dimensão material do conceito fundador, aisthesis, se viu relegada às margens do pensamento estético, com a polissemia do termo estética permanecendo, principalmente, enquanto resíduo histórico.
A formatação da disciplina filosofia da música reforça esse percurso que a estética trilhou em direção a uma filosofia da arte. Por conseguinte, não se tem ainda sistematizado uma “filosofia do som”, uma “filosofia acústica”, uma “filosofia dos parâmetros auditivos” ou, finalmente, uma “estética do audível”.
Ao longo da história da filosofia, entretanto, o som figurou nos mais importantes debates, ainda que frequentemente à margem. De suma importância para a ciência do século XVII, o som recebeu a atenção de Johannes Kepler, René Descartes, Marin Mersenne, Claude Perrault e Isaac Newton, entre outros. No século XVIII, Leonhard Euler tematizou a sensação da consonância sonora que se escuta musicalmente e buscou uma razão matemática para o que até então seria somente uma sensação, o que, segundo Peter Pesic (2014), criou uma “estética matemática” que permaneceu inexplorada. Hermann von Helmholtz, que está para a fisiologia como Euler, para a matemática, integrou a ciência musical e a estética à física e à fisiologia acústica de modo inovador e paradigmático em um trabalho pioneiro sobre o aparato auditivo, a sensação sonora e os parâmetros dessa sensação. Na área da psicologia Christian von Ehrenfels pôde extrair a sua principal tese, expressa em seu conceito de “qualidade de forma” [Gestaltqualitäten], a partir da diferenciação qualitativa entre as fenomenologias do som e da música. E, finalmente, o romantismo alemão e a fenomenologia não se deram sem a contemplação perspicaz do som.
Embora o último século tenha testemunhado a proliferação de discursos filosóficos sobre o som e a escuta, uma disciplina nos moldes da filosofia da arte ou da filosofia da música permanece à espera de uma sistematização. Uma filosofia do audível requereria uma ampliação disciplinar no que tange às fronteiras atualmente constituídas e consideraria as pesquisas realizadas sobre o som em séculos passados. A atualidade desse “novo” campo reflexivo, de caráter explicativo ou descritivo, ultrapassaria, sem excluir, o objeto sonoro ou soante, o ruído, a voz e, principalmente, a música, no intuito de alcançar a percepção e as experiências auditivas de modalidade cruzadas (crossmodal perceptions), integrando-se, finalmente, não apenas ao campo da filosofia da percepção, mas também aos da política e da ética.
Acenando para o estabelecimento de um campo da filosofia do som e do audível, gostaríamos de convidar autores a enviar contribuições que se relacionem, mas sem necessariamente se aterem, a um dos seguintes tópicos:
- O som no longo século XVII
- Ressonância e iluminismo
- Metafísica da escuta
- Fisiologia acústica e estética
- Fenomenologia da escuta
- Filosofia da percepção e filosofia analítica: teorias proximais, mediais e distais do som
- O inconsciente acústico
- Objeto sonoro
- O sujeito ouvinte
- A acusmática como domínio filosófico
- O audível (the audible)
- Pensar com os ouvidos
- Escuta e desconstrução
- Som, escuta e biopolítica
- Filosofia do ruído ou ontologia do ruído
- Som e modalidades sensoriais cruzadas
- Virtualidades sonoras, agregados sonoros e percepções emergentes
- O som como informação e dado digital
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PHILOSOPHIES OF SOUND AND THE AUDIBLE
Call for papers – ArteFilosofia
Edited by Igor Reyner (UFRJ) and Ricardo M. Nachmanowicz (UFOP)
Deadline for submission: June 30th/2024
Roberto Casati, Jérôme Dokic and Elvira Di Bona (2020) claim that what makes sound worthy of philosophical analysis is not only its centrality to the perceptual scene but also the idiosyncratic ways in which it presents itself as a philosophical subject. Reassessing sonic categories that have already been established as philosophical themes, such as noise and the sound object, recent publications, such as Cecile Malaspina’s An Epistemology of Noise (2018), the collection edited by James A. Steintranger and Rey Chow, Sound Objects (2019), Lawrence Kramer’s The Hum of the World: A Philosophy of Listening (2019), François Noudelmann’s Penser avec les oreilles (2020), and Naomi Waltham-Smith’s Shattering Biopolitics: Militant Listening and the Sound of Life (2021), have ushered in heterogeneous new ways of thinking about sound and philosophy. In recent decades, the expansion and institutionalization of Sound Studies — that is, ‘the interdisciplinary ferment in the human sciences that takes sound as its analytical point of departure or arrival’ (Sterne, 2012) — and the introduction of the concept of sonotropism (Scherzinger, 2012), which refers to philosophy’s ‘aspiration towards the condition of music’, have revealed the potential of sound and its classical forms — the voice, music, and noise — to be treated as philosophical objects. These trends are, moreover, evidence of a widespread desire to give listening and the sonorous centre stage in theoretical inquiries.
An archaeology of this ambition might point us towards the Greek term aesthesis, whose meaning encompasses multiple dimensions of human sensibility and the senses. Depending on how it is mobilised, aesthesis can relate, among other things, to the organs of the senses, the perceptual faculties, the experience of perception, or to the perceived objects. In the philosophical context, its prevalent meaning is derived from ideas put forward by Plato and Aristotle, according to which aesthesis is ‘a particular cognition presented under an intuitive form [gnôseis]’.
Since Greek philosophy, the term has played a range of roles in association with dominant early modern Western theoretical stances, reaching its height with the coinage of the term Äesthetik by Alexander Baumgarten, in the eighteenth century. As Marc Jimenez (2004) highlights, from the nineteenth century onwards and due to its etymological ambivalence, the term aesthetics has come to relate both to ‘the delimitation of the field of knowledge bearing on art and the beautiful’, and to ‘the specialization of knowledge, methods, and objectives relative to the study of the sensible’. However, the historical process whereby aesthetics came to be institutionalised as a discipline narrowed its inherently wide scope since it has gradually become a synonym for the philosophy of art. In this process, the material dimension of the founding concept, aesthesis, was relegated to the margins of aesthetical thinking, with the polysemy of the term aesthetics remaining mainly as a historical residue.
The shaping of the discipline of philosophy of music reinforced the trajectory that aesthetics has followed towards becoming exclusively a philosophy of art. This might be the reason why there has not yet been an institutionalised equivalent, such as ‘philosophy of sound’, ‘philosophy of acoustics’, ‘philosophy of auditory parameters’, or, finally, ‘an aesthetics of the audible’.
Throughout the history of philosophy, however, sound has featured in the most significant debates, even if often marginally. Of great relevance to sixteenth- and seventeenth-century science, sound garnered the attention of Johannes Kepler, René Descartes, Marin Mersenne, Claude Perrault, Isaac Newton, and others. In the eighteenth century, Leonhard Euler attempted to define the principles of consonances as the core part of his theory of music, seeking to describe the mathematical reasons that could explain what had hitherto been understood as a sensation, creating what, for Peter Pesic (2014), is a ‘mathematical aesthetics’ that remained underexplored. Hermann von Helmholtz, who was to physiology what Euler was to mathematics, combined musical science and aesthetics with physics and acoustic physiology in innovative and paradigmatic ways into a pioneering work about our aural apparatus, sound sensation and its parameters. In the field of psychology, Christian von Ehrenfels was able to extract his main thesis, which is expressed by the notion of ‘Gestalt qualities’ [Gestaltqualitäten], from the differentiation between the phenomenological qualities of sound and music. And German romanticism, as well as phenomenology, did not come about without sharply interrogating the nature of sound and listening.
Although the last century has witnessed the proliferation of philosophical discourses on sound and listening, a discipline devoted to these topics in the mould of the philosophy of art or philosophy of music is yet to be established. The definition of a philosophy of the audible would require a widening of the aesthetical field as well as taking into account research on sound and listening undertaken over the past centuries. The breadth of this ‘new’ field would surpass, without excluding, the sonorous or sound object, noise, the voice, and primarily music, in order to encompass the auditory dimension of cross-modal perceptions, incorporating not only philosophy of perception but also politics and ethics.
With a view to contributing to instituting a philosophy of sound and the audible, we invite contributions related but not restricted to one of the topics:
- Sound in the long seventeenth century
- Resonance and enlightenment
- Metaphysics of listening
- Acoustic physiology and aesthetics
- Philosophy of perception and analytical philosophy: proximal, medial and distal theories of sound
- The acoustic unconscious
- Sound objects
- The listening subject
- Acousmatics as a philosophical field
- The audible
- Thinking through the ears
- Listening and deconstruction
- Sound, listening and biopolitics
- Philosophy of noise and ontology of noise
- Sound and cross-sensorial modality
- Sonic virtuality, sonic aggregate, and emerging perception
- Sound as information and digital data