ISSN: 2596-0229
Vol. 7 Núm. 13 (2024): Dossiê Educação Teatral e Fins de Mundo
Nos anos recentes, a maneira como as mudanças em nossos modos de vida se aceleraram chegou a alguns extremos e pontos de inflexão irreversíveis, “pontos de não retorno”, que estão situados no âmbito convencionalmente definido como “real”, mas também em campos menos identificáveis como tal, que causam consequências bem concretas em nossas vidas (o ocaso de certezas existenciais, por exemplo). Nesse sentido, a pandemia COVID-19 foi uma catalisadora global de forças já atuantes em várias esferas (sociais, acadêmicas, econômicas etc.), onde sofremos rearranjos de valores e o esgotamento de modos de ver o mundo e a própria vida, modos de sentir e perceber, desejar, planejar, construir e compartilhar as estruturas e os laços sociais.
As imagens predominantes de fim do mundo são formadas por catástrofes explícitas, em uma espécie de apocalipse à moda antiga, cujas causas podem ser o aquecimento global, pragas inesperadas ou uma insurreição coordenada de todas as máquinas inteligentes. Porém, devemos estender a nossa concepção de mundo para além da visão estrita do planeta Terra enquanto morada material de toda a raça humana e dos seres vivos que conhecemos. Porque é gritante como nossa estrutura emocional, nossas crenças, nossas soluções para lidar com o mundo, nossas organizações de relacionamento social atuais não têm dado conta de responder à demanda de estarmos vivos, de modo minimamente viável. Trata-se de diversos mundos que estão em colapso.
No ambiente delimitado das artes, já na segunda metade do século XX e no início deste XXI, estilos de expressão tentam explorar as fronteiras entre os supostos real e ficcional, desafiando (cada vez menos eficazmente) parâmetros ético-estéticos vigentes. Nesse contexto, como fenômeno mais abrangente, a performatividade, na forma de conceito mais circunscrito à filosofia e às artes cênicas ou colocada na condição de termo caro aos estudos de gênero, se desdobrou como fomentadora de uma maior diversidade do comportamento e da corporeidade no cotidiano e nas diferentes mídias hegemônicas e sociais. Ao mesmo tempo, as turbulências políticas e a intensificação de movimentos reacionários, situação na qual ainda estamos, comprometeram excessivamente as fronteiras entre o que é visto como falso ou verdadeiro, certo e errado, numa complexidade perturbadora que poucas ou, talvez, nenhuma obra ficcional tenham logrado implementar ou, até mesmo, mesmo sugerir.
Num paroxismo das mudanças de percepção desde o início do século XX, estamos imersos no audiovisual e nos encontros remotos, ou ainda, no metaverso e na realidade aumentada, que reconfiguram tanto os modos de viver o tempo e o espaço, quanto às noções de relação e presença nas quais sempre nos baseamos. Hoje, todes acatam o inevitável recurso aos smartphones (próteses usadas por todos os corpos, tornando-nos inegáveis ciborgues), que agregam e concretizam todas estas modificações, que cotidianamente nos causam alarme frente à intensidade inédita de alterações da nossa atenção. Estas novas formas de percepção problematizam a própria trama do real, com uma magnitude certamente nunca vista, talvez sequer ambicionada por qualquer movimento estético, e desafiam nossos parâmetros do que deve e pode ser uma aula de teatro ou ação cultural em teatro.
No campo da Inteligência Artificial, IA, que desde seu batismo nos intimida com a questão central da imitação e consequente substituição de humanes, constatamos a crescente onipresença de máquinas que tomam decisões por nós. Mesmo que previsões otimistas tentem reduzir o alarme ante o aumento do controle sobre as vidas e a precarização do trabalho, a Inteligência Artificial certamente nos tornará obsoletos, do ponto de vista da exploração do trabalho, se não instituirmos outros parâmetros que façam frente aos imperativos da cultura de competência e eficácia, tão cara ao capital. Se tradicionalmente a educação teatral foi propalada como promessa de desenvolvimento de valores éticos, hoje ela é assombrada com a possibilidade de ser capturada como treinamento para recursos humanos que não sejam substituíveis, pelo menos por enquanto, por máquinas: as chamadas competências emocionais, sociais e interpessoais, ou soft skills.
Estranhamente, setores da economia parecem interessados em ocupar, de modo arriscadamente predatório, um lugar que talvez não tenha recebido nossa devida atenção: colocar em prática uma concepção, já proposta desde Nietzsche e abordada há décadas, na qual a arte é imbricada à vida, numa ampliação radical e abrangente da noção de estética. No caso da educação teatral, em que há muitos anos temos elementos para tecer uma visão mais expandida de sua atuação pedagógica, tocar pedagogicamente os quadros de percepção que regulam toda a nossa relação com a realidade – a estética da e na vida, a teatralidade do cotidiano.
É nessa perspectiva que talvez possamos tecer relações mais amplas da educação teatral com todas essas transformações sociais de término, falência, esgotamento, instabilidade, reconfigurações drásticas e desterritorialização. Assim, neste dossiê propomos a presença de textos que abordem relações da educação teatral com temas que, de um modo ou de outro, sintomatizam ou configuram fins de mundo sob diversas ordens.